2.8.06

Malvada

(foto de Tiago Santana, in www.imafotogaleria.com.br)



Eu te chamo e, você, trocista. Quando eu te ligo, cada toque pula afoito e esbaforido. Eu respiro fundo e presto atenção no silêncio-toque-silêncio. Você atende e eu grito Alô. Não falo comedido, não falo como a gente toda. Eu grito. Você percebe e eu enrubesço. Até a parede ri de mim. A mão treme, o gancho suspira e implora para eu me pôr ali. O gancho exige. Tira sarro de mim. A gente conversa sobre o dia. Meu dia não tem quase nada de bacana. Eu me esforço, espremo, até invento uma mentira. Não dá certo. Você percebe. Certeza que você percebe. Eu peço por favor para falar alguma coisa inteligente. Tremulo a voz. Visto coragem e lá sai uma risada sua. Fico em dúvida se ri é de mim. Eu te convido para ver uma cerveja correndo no Ibirapuera. Confundo tudo. Era ver um filme no cinema, beber uma cerveja ou caminhar no Ibirapuera. Não sei direito do que você gosta e troco todas as bolas do mundo. Você, de novo, percebe. Do lado de lá, adivinho, você deve estar contando sussurrado para uma amiga meu pavor segredado. Você, malvada. Você, perversamente delicada. Você, que me cativa e maltrata.

Fico olhando seu número anotado na folha de papel. A gente já desligou. Olho de novo seu telefone. Uma seqüência safada de oito numerozinhos demoníacos. Lembro do meu "tchau" baixinho. No tchau eu não gritei.

Que crueldade.

Puxo uma caneta de cima da mesa. Escrevo embaixo do seu nome: “Moça malvada”. E um pouco mais para baixo, com uma flecha, entre dois asteriscos:
“Ligar de novo”.

Aceno

(foto de Pierre Verger, in www.pierreverger.org)



Se me despeço, é porque não sobrou bandeira que envergue
nem gesto miúdo para pensar se te devo mostrar
ou esconder.

Se parto, é porque não
tenho mais a dúvida que censura um coração exposto,
a insegurança de saber se disco, se não disco,
ou se te entorno palavras
sinceras soltas,
mornas fugidias,
ou enrededas em uma caixilha de metal frio.

Se não fico, é porque
O espelho não faz reflexo teu
mas me devolve eu mesmo,
é porque voltei a ver no mundo
a quietude desanuviada e decente
de passantes sem preocupação.

Se me não permaneço, é porque
não te vejo mais tua
no gesto que se me entregou,
não te descubro mais nua
nos vôos imaginários de um céu cadente.

Não encontro sede no arroubo de um copo empoeirado e
não escondo pão na vontade de um banquete famélico.

Só te abandono
- violento-te o suspiro -
porque não te tive,
porque te imaginei fantasiada,
desenhada com traços finos de nanquim,
e porque não pude quando você,
desperta e sem desassossego,
docemente não me quis.