10.2.06

O pescador

(Fotografia de Pierre Verger, "Itapuã", in www.pierreverger.org)


Duas ou três velas se acendem ao mesmo tempo e outras as seguem como se um sopro fosse suspirado ao contrário. O cheiro de mar é menos sentido do que o aroma diário do corpo que se ergue ao lado. Às quatro e quarenta e cinco da manhã, praticamente todo o vilarejo já acostuma a madrugada ao dia e põe sombras de gente nas janelas do outro.

O café é rápido e muito quente. Os homens logo exigem outros homens no limiar da porta e no aceno, "Bom trabalho", das mulheres ainda em velas. Procuram-se com os passos pelas grandes e médias e pequenas pedras do caminho que, salvo um ou outro, cada dono e pescador teve que trazer até sua casa. Ainda no segundo pé eles já se embaraçam em suas redes de pescar. Nenhum pensamento se derrama.

Como em todas as vezes, apenas uma das portas foi fechada pelo próprio pescador que saiu. Nas costas não leva rede, mas uma antiga vara de pescar. De frente, dois olhos verdes como asas fulgurosas de borboleta multicor, vistas contra um quadro preto pintado com a tinta que escorreu densa e pura de centenas e centenas de seguidas jabuticabas.

A história de Zeca, seus olhos verdes e sua vara de pescar, correu por esse vilarejo.

O caminho dele até o porto era daqueles que não vinham em pedra. Andava entrecortes pela areia batida, caçoado por cada rede que lhe costurava nós de ironias até chegar à enseada, onde cada qual barco e sua amarra fugiam, e o mar principiava contornos de espaços conhecidos.

Já na época do Zeca, os dias, eles todos, eram quase sempre iguais, o sol a rede a procura o destempero os peixes acostumados o tempo correndo sem vista o barco parado sem pausa.

Só uma ou outra vez é que havia uma novidade nova, uma que soprava a gente toda balançada numa rede de história. Nesses dias, os pescadores e suas famílias, avisados, urgentes e reunidos no Bar do Céu, silenciavam profundo, como se estivessem sozinhos à deriva de pelo menos um remo e um norte na imensidão de um mar noturno e perdido. Nesses dias, o vilarejo escutava com um coração sem terra.

É verdade, porém, que não era só nessa urgência que as famílias se reuniam no Bar do Céu. Acabado o dia de pesca e alimentadas do encontro com o seu pescador, elas se juntavam regular e diariamente naquele que era o único bar do vilarejo. E também não deixa de ser verdade que, em cada vez, lá estava para acompanhá-las a novidade aclimatada, sorridente cantada por um Zeca pescador de vara antiga.

Nas noites sem novidade nova, ele logo empunhava pensamento e sobrepairava o murmurinho, Hoje o anzol me procurou espaçado pelo mar e sozinho me trouxe de volta para o barco. Ainda rápido costumavam seguir risadas, silvos e duas ou três incredulidades, mas que logo perdiam corpo para os curiosos, "Hoje pescou o quê, Zeca".

Em um dos dias, Zeca pescou uma árvore que havia fugido da terra. Estava a três quilômetros a noroeste do vilarejo, acompanhando a Corrente do Velho e sem perder o parelho com o encosto da terra. Era um pessegueiro lindo, disse, com quatro metros de altura e uma parecença com um chorão — ao qual atribuiu o fato de estar tanto tempo enrugando — e Zeca sobrempé na cadeira no meio do Bar do Céu, distribuindo alto a história do seu dia, "Só não trouxe o pessegueiro", relembrou, "porque, vocês sabem, afora os peixes, o mundaréu que eu pesco eu deixo no mar".

Havia quem sorrisse, quem meneasse, e quem, afinal, começasse a dançar.

E então Zeca se animava. Se não tocava seu violão ainda sobrempé na cadeira, era porque seu velho pai uma vez lhe disse que a música era coisa de respeito, e como exigência de promessa para aprender, ele jurou que haveria de tocar, a todo e qualquer minuto, sentado em um banquinho de madeira. Só puxava músicas antigas e arpejava e batucava e assobiava, para logo a seguir saltar de novo da cama como uma das primeiras sombras a desavisar as janelas do vilarejo.

O café as costas a vara de pescar às costas as desamarras o salto das redes o alvorecer verdes os olhos o porto e os peixes as famílias e o Bar do Céu de novo. Na repetição de uma vida de pescador, Zeca pescava, a cada dia, uma fantasia diferente.

Houve uma noite em que pescou um transatlântico. Era coisa que só em livro ele tinha lido, um barco imenso sem remo, com oito janelas para cada pessoa, pratos e bandas com piano para dançar, um colosso colosso de tamanho, uns três da nossa vila de extensão, somadas juntas, só que com leme e casco. Dessa, disse que foi pensativa a pesca, pesca brava, o navio imenso não queria se desafogar, mas, quando saiu, saiu assoviando de bonito.

"Quase trouxe para os olhos do Bar do Céu", mas de novo não pôde. Senão os peixes, ele sempre sempre devolvia o que pegava do mar.

E mesmo nos dias de novidade nova, quando alguém mostrava um peixe gordo de quilos muitos ou desafiava uma história de virar conto de adormecer, Zeca esperava desanuviar a emoção das famílias e logo contava o seu dia, o anzol ressabiado. Vez era uma foca que conversava em uma língua que, jurava, parecia coisa de alemão; outra eram recados entre estrelas-do-mar em uma garrafa de vidro azul; houve um pedaço de ilha que encolheu até virar concha e, uma das pescarias de que ele mais gostou, quatro livros que não molhavam no mar. E o vilarejo escutava quase atento, e a cada noite lá ia o violão que ia logo cantando as músicas que conhecia.

Zeca ficar calado só aconteceu tempo depois, redemoinho de um dia quente como não havia tido outro. Sentou-se no canto do Bar do Céu e não sobresubiu nenhuma cadeira. Nem novidade nova havia, e Zeca não debruçou o assunto de ninguém. Ficou só quieto, olhando as pessoas aos pares e escondendo sua janela para si.

Quando quiseram a música e Zeca não trouxe o violão, lembraram, "Cadê a história, Zeca", e ele diminuiu os olhos, verdes como folhas quase secas de uma árvore vista contra um tom pálido de tez queimada por um sol invertido. Respondeu, curtido:

"Hoje, eu pesquei uma mulher".

Mesmo as incredulidades e os destemperos quiseram ouvir. Zeca não abriu detalhe, minúcia ou cor dos cabelos. Ficou quieto, vago e raso, e não prestou atenção ao silêncio de solidão no mar noturno que, pela primeira vez, as pessoas todas lhe concediam.

O café as costas a vara de pescar às costas as desamarras o salto das redes o alvorecer verdes os olhos o porto e os peixes as famílias e o Bar do Céu de novo.

E de novo e por seguidos dias, Zeca saía de manhã com sua vara de pescar e, à noite, punha-se sentado no canto, cada vez mais curto e mais canto. Passou a escrever poesias na mesa de madeira, anunciando sorrisos discretos que substituíam o ponto final. Todas as poesias do Zeca não tinham ponto por isso: ele dizia que o fim estava no sorriso que só ele viu que floresceu.

Das histórias, ele só contava que havia outra vez pescado a mulher. Já sabiam que era morena, que conversava sobre os homens e sobre os pescadores, resignava respostas a todas as perguntas e cultivava pelo menos dois amores — e, quais eram, foi notícia que o Zeca nunca quis dizer. Um dia contou que ela lhe havia segredado: "Durante o pino do sol, eu tomo sombra no pessegueiro". Ele sorriu.

A história de Zeca foi nesse vilarejo.

Era um dia de outono, às dez para as cinco da manhã, o escuro salteado pelas velas nas janelas e as primeiras portas se abrindo, com os pescadores e suas redes no caminho de pedra. O porto esperava balançado.

Zeca saiu de sua casa e parou de frente para o mar. Seus olhos verdes se confundiam com a cor impensada de uma água reflexa do dia mais claro da história do tempo.

Trancou a porta a chave.

Lançou-se para o barco devagar, seu barco de madeira, contando os passos pelo caminho de areia. Desenlaçou as amarras e olhou para o vilarejo com intenção de aceno.

Zeca não levava a vara de pescar nas costas. Trazia, a gente toda viu, era seu violão de tocar música antiga.