29.6.06

Pangéia

(foto de , in www.imafotogaleria.com.br)


, quero um cachorro que me atenda a companhia, que rejeite meu silêncio de pedra e que me encoste um nariz frio, sem pedir exigências

, quero um peão que roa as horas emprestadas de meu dia, estas que ganhei em uma aposta com a vida e que não aceitam devolução

, quero duas mãos separadas do mundo e de outro corpo, mãos macias de algodão-doce que me façam carinho no escuro e no claro

, quero dois pedaços de pano para fazer um bolso para minhas tristezas

, quero uma casa com paredes de frases de poesia, com músicas de ficar alegre, com redes de se deitar em paz

, quero uma borracha branca para apagar seu sorriso novo e seu sorriso antigo, seus cabelos ondulados de uma curva que você roubou do mar

, quero uma borracha branca para apagar sua carícia minha em mim, seus olhos de labirinto e seu corpo despudorado e ausente de pena

, quero retalhar as torneiras frias que me abrem na cara e os tapas violentos que me sobem, trepadeiros, a alma

, quero um outro peão que me gire o mundo ao contrário

, quero um frasco para me pôr líquido e escolher como fico

, quero afugentar meus dedos, meus pés, minhas unhas

, quero óculos de não ver além e nem de perto

, quero latir, rosnar, chafurdar sem suspense e garbosidade.


Vou ser sujo e vou rodar pelo mundo até esquecer o mundo feito de você.

Pro memoria

(foto de Ana Araújo, in www.imafotogaleria.com.br)



Transito por um de meus e-mails antigos com cuidado. Uma daquelas contas que a molecada mais jovem abriu quando a internet ainda era novidade e as cartas se recusavam a virar matéria de livro amarelado. O selo não era apenas objeto de colecionador e se prestava para dar notícia de morte e de vida. A caixa de entrada é extensa. Naquela época não era prática apagar este ou aquele e-mail ou organizá-los todos sistematicamente em pastas redobradas de classes, ordens, gêneros e espécies. No ponteiro de meus dezoito ou vinte anos todos os nomes vinham seqüenciais e babélicos. Se se perdiam era porque havia uma outra página adiante e os remetentes se esquivaram da obrigatoriedade de ser insistentes. De atuar como refrão.

A linguagem era outra. Prolífera em adjetivos. A poesia escorria irremediável mesmo se o recado pudesse ser de uma linha. As despedidas se vestiam de majestade e o beijo simples era reproduzido por uma mão, na forma de arco, lançado o carinho. Não dizia até logo. Diálogos vivificados de gula. Tempo para discutir vírgulas e apetrechos da vida. Badulaques da língua e refugos do coração. Paixões sempre inéditas e o espírito em uma caixa de universo.

Agora tudo é telegráfico. A paixão quase sempre é acostumada e cotidiana. A poesia se resume a críticas à poesia dos outros e se esquecem as pessoas mais por falta de amor e tempo do que pela voracidade de querer o mundo inteiro. Não se discute mais a tenacidade de princípios, mas a temperatura do dia e da noite. Dentro de elevadores petrificados, elevadores de subir e descer gente morna.

Decido que vou voltar a usar minha antiga conta de e-mail. Assaltar minhas obrigações e pôr nas costas minha poesia antiga.

Só tenho medo, um medo sincero, de não ter tempo para ler as respostas que os meus amigos, talvez, venham a me mandar.