26.4.06

Título


(fotografia de Pierre Verger, in www.pierreverger.org.br)



Correu a notícia de que todos os jornais, amanhã, sairão com a capa em branco. Sem chamada, sem urgência, sem história e sem data. Será dito que os redatores pararam e decidiram lançar a sorte com dardos de vento; os editores sorriram um silêncio de céu, como se voassem com asas sobre as nuvens do seu tempo; o repórter não questionou, não desafiou ou desbotou o mundo em busca de um preto e branco mais cinza.

Amanhã, os jornais todos irão parar. E, em vez de folhas de tinta, a gente vai comprar folhas em branco nas bancas de revista.

Na minha - minha logo cedo - eu vou escrever com lápis seguro:

"Moço saudade moça".

(e você, com mão itálica e seu jeito dengoso, fará o subtítulo)

Traços diários

(fotografia de Victor Andrade, in www.imafotogaleria.com.br)


Ele nunca soube,
mas, durante todo aquele tempo,
eu mantive um caderno de folhas sem linhas.

Punha nele a palavra acontecida,
solta de ordem, posição, flexão e gênero,
de ponta-cabeça,
intercruzada a palavra do dia anterior,
seguinte logo-antes à do dia seguinte,
na ribanceira de fim de briga-de-casal,
no colado definitivo de vontade de-hoje.

A cada dia que eu estive com ele,
desenhava sofria cuidava acarinhava
um adjetivo:

..........Um bonito
......... azul, irritadiço, alegre, passional
..........pavoroso, um de moça, um de doce, linda, silenciosa, suspiroso
..........de bico, arrebatador
..........um urgente
..........um de amor.

Foram seiscentos e sessenta e oito,
no papel sem linha.

Fiz rabo de pipa com fofo;
triângulo equilátero com três e repetidos furiosa;
emoldurei feio entre amante-cioso-garrido-garboso;
sequenciei um apaixonada como um dominó de uma e uma bolinhas;
casado embrulhou-se no casada
e ciumento foi canto com sedutora no seu oposto;
.........
..........feliz se amaranhava na folha inteira.
..........triste era pequenino e invariável entre espaços espirais.

Ele nunca soube desse meu presente diário para nós.
Esse, de um adjetivo por dia,
de em um caderno sem linhas de folhas brancas.

Nem se desconfia de que eu rasguei as páginas desabitadas,
e que, há cento e vinte e uma noites,

..........devolvo palavra por palavra,
..........uma a uma por vontade,
..........e uma a uma por noite,
..........e uma a uma de trás para frente, de rosa-de-ventos, de meio e de canto,
..........uma a uma, aleatórias, soterradas e desafogadas,

com borracha precisa e apontada,
que comprei – mais de uma – só para isso.

Decidi apagar meus traços de palavra, pintura e desenho.

Esses, esses mesmos de que ele nunca teve aviso.