25.11.05

Manancial


(foto de Avani Stein, in www.imafotogaleria.com.br)


Meu objeto predileto é um pouco o detalhe de mundo que eu vejo, e o muito nele que eu gosto de adivinhar.

Na semana passada, por exemplo.

Vinha sozinho, carregado pelo manancial de luzes da Avenida Paulista, e me perguntei por que nunca ninguém, na rua, olha para cima. Ainda que a resposta imediata tenha sido a óbvia assertiva, Os outros vão achar que somos loucos, não desfaleci a intenção e me pus a olhar sobre em cima. Os prédios todos são muito imensos e de perto se tem a certeza definitiva de que são maiores do que a gente. Cada um deles tinha vida, ramificações da luz, janelas entreabertas por suspiros e antenas enormes que bem podiam, pensei, receber boas intenções e transmiti-las televisivas para os espectadores.

Mas um prédio, só um, estava inteiro escuro. Apesar de sua envergadura pequenina, oito andares contados, me pareceu maior do que todos os outros quando o medi, e indaguei,

Alguém?

Esperei.

Nada.

Pior do que silêncio é não haver nem aviso de que o barulho foi roubado.

Um enorme cadeado rasgava a porta colossal do prédio pichado e escuro. As janelas estavam fechadas de par em par e faziam fotografia de seqüenciais olhos dormentes. Passei, devagar, vi adiante o MASP e tornei a procurar as estrelas reflexas do asfalto.

As janelas continuavam exatas e imóveis, resignadas, quando passei em frente ao prédio no dia seguinte. Já pouco cioso por quão louco a Avenida Paulista iria me tomar, parei e estanquei. A sério que desafiei o prédio, Alguém?, gritei, e um vento trocista me respondeu lufando e nenhuma, absolutamente nenhuma janela se mexeu.

O negrume das paredes, carregado de velhice. O pequeno pátio lateral, passagem de mato e interrogação, provavelmente leva aos fundos. Os riscos da janela na altura do terceiro andar se reproduzindo como trepadeiras e um vazio mortificado do vão de entrada até o último canto do último cômodo do oitavo andar.

Ocorreu-me, porém, e só podia ser isso, que um casal morava no prédio inteiro desde 1963 e, a cada ano, descia ou subia todas as suas coisas para o andar de cima ou debaixo. Que a moça ganhou o edifício do avô italiano quando ainda não havia luzes suficientes para cegar a escuridão. Que tiveram dois filhos que preferiram ganhar o mundo e a quem lhes foi pedido, Passe o cadeado na porta. Que não abriam as janelas porque ninguém se importava em pedir. E que esqueceram de que alguma vez houve outra frase no mundo que não Eu te amo.

Daí eles não terem entendido meus olhos para cima e minha pergunta, Alguém?

Alguém.

E o manancial me levou embora.

4.11.05

Menino



porque a moça bonita que me dá algodão-doce todo dia não me chama mais, não me acarinha e não me faz agrado comigo nos meus cabelos despenteados

porque me tiraram o sorvete gelado de coco que escorre-escorre pela calçada e pela vontade, e vai inundando a minha rua de criança com um riozinho branco travesso e desobediente

porque me descalçaram o sapato azul que me fazia voar com meus dois sabiás

porque ganhei de presente um amor de gente grande e desembrulho desembrulho e olho com olhos bem grandes, pedindo que alguém por favor me corte o laço de fita dessa caixa maior do que eu.