17.10.05

Para o seu lugar predileto



Na terra do nunca, nenhuma fada fica grávida e nenhuma ninfa priva sorrisos.

As moças melodiam caminhos e eu vejo doze sóis contra um capitão gancho qualquer.

Reconduzo por palmas minhas intenções infantis mais queridas e acho, pela primeira vez, um jeito de voltar para casa sem pirlimpimpim.


(originalmente "Ao Roda Viva", nosso boteco freqüente na Vila Madalena.
Escrito a quatro mãos, com Guilherme Corsini)

5.10.05

Dois livros e poucas notas sobre cada um



1. Nove noites (Bernardo Carvalho)

O autor é o vencedor do prêmio Jabuti de 2004, com Mongólia (que ainda não li).

Nove noites me surpreendeu ─ positivamente ─ pela simplicidade com que é escrito. As palavras são tão corriqueiras e tão usuais que o dicionário se ressente de não ser aberto. A escrita é fluida e leve, o que pode se explicar pelo autor ser jornalista, e o enredo desperta curiosidade, talvez por ser baseado em fatos reais.

O aspecto formal que merece comentário, a meu ver, é a forma narrativa, que varia de um tom confessional, traduzido em cartas, para um narrador investigativo, instigado pelo mistério da morte de um antropólogo.

O trecho literário de que mais gostei foram as histórias de índios, contadas pelo tal antropólogo. Em uma delas, ele conta que todos os indígenas de uma pequena aldeia situada em alguma ilhota do Pacífico Sul escolhem quem são seus parentes. Podem ter quatro mães, quinze irmãos e trinta e oito primos. Como podem ser órfãos por escolha. Essa conformação social, como bem comenta o narrador, é um ‘achado’ antropológico, já acaba lidando com escolhas, dificuldades e auto-determinação extremas, refutando parte das imposições morais em razão das quais nós geralmente nos afligimos (ou nos contentamos). Mais além, o antropólogo comenta que era um grande mistério ─ que ele não conseguiu resolver ─ a forma como as linhas genealógicas (de sangue, não de opção) eram revolvidas e desenhadas, de forma a evitar distúrbios genéticos ─ que o diga o rabinho de porco do último dos Aurelianos.


2. O Grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald)

O livro exige ser lido em pouco tempo e é um primor do começo ao fim (as duas primeiras páginas são avassaladoras).

Fitzgerald, ao comentar com seu editor como havia escrito as 250 páginas do livro, disse que o tanto que cortou da edição final daria para outros três romances. Este, portanto, é o aspecto formal que se saboreia: a capacidade de concisão do autor é, realmente, um negócio estrondoso.

O aspecto literário, no entanto, é sem dúvida o que sobreleva. A definição das personagens é incrível, o tracejado moral de cada uma delas, as intenções veladas e a força do não-dito têm um corpo incrível. Exemplo disso, Gatsby, nas palavras de Fitzgerald, não tem um contorno definido: o leitor o adivinha, embora no final do livro tenha certeza de que, se o encontrasse na rua, jamais o reconheceria. Gatsby é desenhado de acordo com as impressões morais e intelectuais que ele causa, ou, melhor, 'impõe' ao leitor (quase não há, no livro, adjetivos definindo Gatsby).

Não concordo com o Paulo Francis, que no verso da minha edição diz que O Grande Gatsby é um livro para apaixonados. Claro, há uma paixão central no livro e os permeios e redemoinhos por que as personagens atravessam são movidos essencialmente por uma paixão. Mas o livro me pareceu muito mais um espelho para a natureza humana e para suas relações. Nele, os silêncios são melhores do que os diálogos.

Dois trechos me marcaram, pelo que os reproduzo:

.I.
Jordan Baker evitava instintivamente homens perspicazes e agora eu via que isto acontecia porque ela se sentia mais segura num plano em que qualquer divergência de um código seria julgada impossível. Ela era uma desonesta sem cura. Não era capaz de suportar uma posição de desvantagem e, considerando esta resistência, imagino que ela começara a lidar com subterfúgios ainda bem jovem a bem de manter aquele sorriso insolente voltado para o mundo e, ainda assim, satisfazer as demandas do seu corpo vigoroso e elegante.

Não fazia diferença para mim. A desonestidade numa mulher é uma coisa que nunca culpamos com muita profundidade ─ eu deplorava ocasionalmente e depois esquecia. (...)
Todo mundo suspeita de si mesmo que possui pelo menos uma das virtudes cardeais e esta é a minha: sou uma das poucas pessoas honestas que já cheguei a conhecer.

.II.
Quase cinco anos! [ele não via a mulher por quem se apaixonou havia 5 anos] Deviam ter ocorrido momentos, mesmo naquela tarde, em que Daisy deixou de preencher os seus sonhos ─ não por culpa sua, mas por causa da vitalidade colossal da ilusão de Gastby. Fora além dela, fora além de tudo.

Ele se jogara naquilo com uma paixão criativa, acrescentando algo o tempo todo, embelezando o seu sonho com cada plumagem colorida que surgisse em seu caminho.