Para os outros
(Fotografia de Luzia Simons, in http://www.imafotogaleria.com.br)
Levantou-se e seguiu para a arrumação da cozinha. Seus olhos caíam um pouco pelos cantos e o sol amanhecendo estava quase distante. Lavando a louça, o dia nascia.
Seus olhos eram os mesmos.
Livrou-se da louça e dos cabelos que a perturbavam na arrumação desordenada. Ajeitou-os maquinalmente, como fazia sempre: um coque, no alto, disfarçando sua figura para quem quer que eventualmente ali a visse, assim.
A sala parecia em ordem, os móveis todos dispostos como os havia moldado, dez anos atrás, para agradar os visitantes. A sala, impecável, não soluçava um pó e não descerrava nenhuma surpresa, seus quadros imóveis e suas luzes que descortinavam o dia.
Vistoriou os quartos, o banheiro, e finalmente a porta de entrada, que era religiosamente limpa. Diária e trabalhosamente limpa, a porta de entrada e sua importância quase absoluta.
A essa altura, o coque se embaralhava novamente. Hoje talvez viesse alguém, e a sala deveria estar pronta, os banheiros asseados e a cozinha sorridente.
O dia trouxe consigo o céu e ela flutuou alguns centímetros às avessas enquanto caminhava vagarosamente pelo corredor extenso, enxuto e tratado como um cão.
Seu banho foi morno, programado e imensamente reduzido.
Pôs-se sem o coque: não evitava mais o atropelo de visões e o desacordo de impressões, mas se arrumava, adequada, para a eventual visita. Sentou-se na ponta do sofá claro, limpíssimo, da sala, e procurou se entreter com os vértices alvíssimos da sala, lembrando das manchas que um dia dali abluiu.
Por vezes a assaltavam lembranças das fotos dos quadrinhos milimetricamente postos e antepostos na parede contraposta, mas logo se preocupava com a harmonia milimétrica e o espaço entre cada um deles e se, como estavam, permitiam que as visitas percebessem essa mesma harmonia e aquele mesmo espaço. Pois haviam, além de tudo, de ser perceptíveis.
A casa adormeceu no correr do dia e a ponta do sofá foi a única parte que pôde se opor à mesmice dos tempos.
Às seis da tarde, o coque se formou sozinho. Levantou-se, abriu a janela para permitir o único vento do dia, foi limpar novamente a cozinha, Já está cheia de pó. Arrumou a sala, os banheiros e os quartos. Fechou a janela que havia aberto.
A noite veio, as sombras, o dia inverso, mas não contrário, e foi se deitar.
Deitou-se naquele mesmo quarto, aquele que ainda não ousara arrumar, aquele por que o tempo era um peregrino e que urgia, aos gritos, que fosse limpo. Deitou-se na mesma cama desarrumada e dormiu o sono desapegado de si mesma.