8.9.05

Para os outros

(Fotografia de Luzia Simons, in http://www.imafotogaleria.com.br)


Levantou-se e seguiu para a arrumação da cozinha. Seus olhos caíam um pouco pelos cantos e o sol amanhecendo estava quase distante. Lavando a louça, o dia nascia.

Seus olhos eram os mesmos.

Livrou-se da louça e dos cabelos que a perturbavam na arrumação desordenada. Ajeitou-os maquinalmente, como fazia sempre: um coque, no alto, disfarçando sua figura para quem quer que eventualmente ali a visse, assim.

A sala parecia em ordem, os móveis todos dispostos como os havia moldado, dez anos atrás, para agradar os visitantes. A sala, impecável, não soluçava um pó e não descerrava nenhuma surpresa, seus quadros imóveis e suas luzes que descortinavam o dia.

Vistoriou os quartos, o banheiro, e finalmente a porta de entrada, que era religiosamente limpa. Diária e trabalhosamente limpa, a porta de entrada e sua importância quase absoluta.

A essa altura, o coque se embaralhava novamente. Hoje talvez viesse alguém, e a sala deveria estar pronta, os banheiros asseados e a cozinha sorridente.

O dia trouxe consigo o céu e ela flutuou alguns centímetros às avessas enquanto caminhava vagarosamente pelo corredor extenso, enxuto e tratado como um cão.

Seu banho foi morno, programado e imensamente reduzido.

Pôs-se sem o coque: não evitava mais o atropelo de visões e o desacordo de impressões, mas se arrumava, adequada, para a eventual visita. Sentou-se na ponta do sofá claro, limpíssimo, da sala, e procurou se entreter com os vértices alvíssimos da sala, lembrando das manchas que um dia dali abluiu.

Por vezes a assaltavam lembranças das fotos dos quadrinhos milimetricamente postos e antepostos na parede contraposta, mas logo se preocupava com a harmonia milimétrica e o espaço entre cada um deles e se, como estavam, permitiam que as visitas percebessem essa mesma harmonia e aquele mesmo espaço. Pois haviam, além de tudo, de ser perceptíveis.

A casa adormeceu no correr do dia e a ponta do sofá foi a única parte que pôde se opor à mesmice dos tempos.

Às seis da tarde, o coque se formou sozinho. Levantou-se, abriu a janela para permitir o único vento do dia, foi limpar novamente a cozinha, Já está cheia de pó. Arrumou a sala, os banheiros e os quartos. Fechou a janela que havia aberto.

A noite veio, as sombras, o dia inverso, mas não contrário, e foi se deitar.

Deitou-se naquele mesmo quarto, aquele que ainda não ousara arrumar, aquele por que o tempo era um peregrino e que urgia, aos gritos, que fosse limpo. Deitou-se na mesma cama desarrumada e dormiu o sono desapegado de si mesma.

5.9.05

O grito




Os dois se encontram em um barzinho da Vila Madalena, noite de terça-feira.

- Fala, meu querido.
- Fala queridão.
- E como tá o trabalho? Trabalhando demais?
- Pacas.
- Você vai virar milionário.
- Não vou não. Vou virar um pobre triste, explorado. Vou reviver os albores da Revolução Industrial. O renascimento do marxismo.
- Eu também.... estou num esquema meio trabalho escravo.
- Abaixo a mais-valia!
- Pode crer. Vamos se rebelar
- Vamos? A gente começa a distribuir o Manifesto na Av. Paulista. A gente pode chamar o nosso movimento de Comunismo Phenixiano, vulgo CP.
- Tipo, vamos chamar o pessoal da zona leste para invadir os Jardins.
- Perfeito. ZL e ZS, o pessoal das favelas da zona sul. Invadir os Jardins, Moema e Vila Nova Conceição.
- Pode crer. Mas tenho uma dúvida. Quando estivermos no poder, no final de tudo, o que mudaria?
- A gente moraria nos Jardins.
- Você diz, tipo invadir casas de quatrocentões?
- É, é.. Famílias como Camargo Bueno, Moraes Torres, Campos Vidigal.
- Cara, recebi informações seguras de que roubaram aquele quadro chamado O Grito.
- Cala a boca. É sério? Quando? Ele estava em que museu? Paris?
- Fonseca Guimarães.
- O que, o museu?
- Não a família, quatrocentona, Fonseca Guimarães.
- Fonseca Guimarães é ótimo. Mas diga aí, quem roubou o quadro, você?
- Fui eu.
- Começou o nosso projeto CP?
- Na verdade, é o começo de tudo.
- Perfeito.
- Para financiar o movimento.
- Vai ser o nosso baluarte, o financiamento e, além de tudo, uma metáfora. Um grito pela liberdade!
- Caracas... vou chorar.
- Abaixo o moralismo putrefato desse vil capitalismo! Vivam as classes trabalhadoras!
- Nem todas. Algumas mais, outras menos.
- É. A gente mais.
- Ou você quer se ajuntar à classe dos fornecedores de pênis de borracha?
- De fato. Não.
- Seria um ultraje à revolução.
- A definição de igualdade qual é mesmo? Tratar os iguais na medida de sua desigualdade. É assim, não é? Sendo assim, os forjadores de pênis tem de ficar no fim da cadeia CP.
- Alguns mais iguais que os outros.
- Isso, isso.
- Eles que fiquem lá com a igualdade dos, sei lá, .... dos viados? Viados também acho que deveriam ficar bem pra baixo na nossa pirâmide.
- Pode crer. Não permitiremos movimentos gays na Paulista.
- Nem pensar. Essa palhaçada de liberdade exagerada sempre dá merda. Liberdade na medida do nosso critério. Fala aí.
- Tipo, a Paulista, como um marco do trabalho, deverá ser um campo de reflexão, de contemplação, para que novas formas de oligarquia e repressão financeira e política não se manifestem entre os homens de boa fé.
- É.
- O pior é que as pessoas se sentem ofendidas.
- Quem?
- Os viados, eu quero dizer, quando zoamos com eles.
- Pois é.. Puta absurdo. "Paulista é campo de reflexão" é perfeito. A gente pode pôr uma faixa na Consolação e na Brigadeiro:
- Isso é um absurdo... quantas pessoas são zoadas por ai: gordos, negros, japoneses, judeus... e nem por isso as pessoas exigem algo a mais.
- "Observem um marco da exploração capitalista que veio ao chão e encontrou seu mesmo e definitivo fim. Contemplem e vivam a Revolução".
- Né?
- Exatamente.
- Pois é ... mas nada de desfile do tipo sete de setembro.
- Imagine.
- Esse tipo de enaltecimento à pátria é sempre prejudicial. Cria nas pessoas uns valores esquisitos, como nacionalismo.
- Aí, já viu.
- Fascistóides na cabeça.
- A gente não quer fascistóides, quer?
- Pois é, acaba destruindo nossa igualdade.
- Que zoado.
- Ainda bem que criamos um consenso. Fala aí. Agora é só convencer o mundo.
- Eles já se convenceram disso... agora só precisa o empurrão inicial que nos tirará dessa inércia.
- Às armas!
- Às armas!

E viram outro copo de cerveja.