15.8.05

Bahia - fotografias de uma viagem

(foto de Renata Camara)

Primeira Fotografia

Grande parte das pessoas daquele barco eram negras, mestiças ou mulatas. Alguns carregavam grandes olhos negros e sobrancelhas tristes, outros poucos traziam olhos azuis amendoados, que vestiam com altivez de propriedade única e de elemento diferenciador imediato, algo como Vejam que tenho algo que só os outros têm. A tiracolo ou deitadas nos bancos, havia caixas com amendoins, cocadas, flores ou simplesmente a velha e repetida caixa de engraxate, pamonha, coco da casca. Refrigerantes e cervejas vendiam só os que já estavam subindo na peregrina vida de vendedores de rua (ou de barcos). Notava-se mesmo no seu andar o desdém que não deixava de ser uma esperança quase paternal, Vem atrás de mim, molecada, que já passei por isso aí. Ao menino, mulato pequenino, olhos suspensos no chão, não lhe erguia busca alguma sobre os porquês de fazer o que fazia, poderia estar se lembrando da última vez em que havia comido um bom pedaço de carne vermelha, daquelas de vaca.

A janela recortava um desenho tombado, metade terra, metade céu. O barco deveria estar em uma de suas ressacas e o mar em um de seus dias pouco navegáveis. Ninguém parecia ligar muito. Só alguns loiros e altos, além daqueles três, prováveis paulistas tresmalhados do rebanho citadino, pareciam sentir, com a natural excitação de princípio ou continuação de viagem, os efeitos do balanço lá cá lá cá. Era bastante óbvio que aqueles ali eram turistas. Mala e cuia, máquina fotográfica, aventurados na cadeirinha do ferry boat a espera de alguma coisa, do dia seguinte. Algo de diferente vai acontecer a esses aí amanhã, deve ter pensado algum dos curtos companheiros de mar.

As cadeiras do ferry boat eram de plástico, presas ao chão por um ferro ereto que as impedia de fugir, ainda que enjoadas pela rebentação repentina de um dia de procela. Uma pequena televisão no alto, provavelmente igualmente presa por alguma corrente para impedir que espíritos imprudentes decidissem a levar dali, dava as notícias do futebol. A parte exterior parecia consistir em um estreito corredor onde não podiam caber mais do que duas pessoas, de lado, a olhar o mar, uma para um lado, a outra para o outro. Por volta de quinze pessoas se refugiaram, ali, da náusea, e encontravam no vento abafado na maresia o remédio para seu mal. Havia candeeiros alçados nas paredes, mas não estavam acesos. Ainda se fazia dia. Algumas pessoas do barco o notavam. Para outras, aquelas das cocadas e a senhora que apoiava sua cabeça sobre suas mãos e seus cotovelos sobre seus joelhos e seus joelhos no chão do barco e o barco na desesperança, parecia tanto fazer. Ao lado dela, um velho sujeito negro olhava o vazio da cadeira de plástico da frente e se esquecia do vazio da alma de pobre de dentro e não se importava com os paulistas, que segredavam entre si, Veja, essa vai ser parecida com Sebastião Salgado.