12.8.05

A avó

A avó recebe visitas em dois horários: à tarde e no início da noite. Os corredores são brancos, as enfermeiras vestem branco, os remédios são todos brancos e há a impressão de que mesmo o café, ali, é branco como os cabelos ruços e antigos da minha avó.

Ela se deita quieta. Os olhinhos atentos e o sorriso largo na boca miúda. As mãos de bolinhos de chuva, de carinho e doce de uva sem caroço e reza - tanta reza que, às vezes, quando criança espantada, achava que, como minha mãe, a avó havia inopinadamente pregado uma mão à outra com superbonder.

Com 92 anos, preocupou-se com o novo Papa. Disse-me em um almoço de família. Não sei o que vem no futuro, parece que ele é muito conservador, e emendava, Você viu que a Tina brigou com o marido? A sua dinâmica e os pulos do público para o privado para o público às vezes me confundia, admito.

Meus tios mais velhos dizem que a avó tinha olhos enormes quando era moça. Via com focos de luneta e caleidoscópio. A luneta para cuidar minuciosamente do mundo, e o caleidoscópio para ver os matizes de Deus nas coisas do mundo.

Seus olhos, vi em fotografias, iam diminuindo com o tempo. Quando nasci, já tinha seus 60 e tantos anos, bordejando os 70 e os dois globos já eram um pouco mais estreitos. Nunca perdeu agudeza, isso é certo. Ao contrário, parece que a percepção ia se destilando, maturada, e os olhos se fechavam, comprimidos, para ver mais longe e melhor.

Quando fez 90 anos, minha avó pediu uma festa, com bexigas e doces e todas as gentes da família. Arregimentou quase todo mundo. Os que não vieram, mandaram escusas e desculpas que lhes davam legítimos salvo-condutos: de outro jeito, vovó iria lembrar, na maior amplitude que isso possa ter, da ausência. Lembraria, é fato. E seria terrível para os ausentes.

Perguntei se estava gostando da festa. Ela fechou um bocadinho mais os olhos, me alçou ao seu metro e trinta com um sutil puxão pelo braço, que fatalmente todos obedeciam, e me disse que sim, que estava gostando, Sobretudo porque já vivi uma vida de que posso falar ter sido mais feliz do que triste, deu dois tapinhas na minha mão e foi cumprimentar outros dois convivas, bisnetos de 5 e 6 anos de idade, que se agarram aos berros, Bisa.

Lembrei desse dia, seu aniversário, quando a vi deitada esperando suas visitas da tarde. Nos 5 minutos que tive, ela me agradeceu a visita, contou-me um caso do seu geriatra, Como a senhora manteve seu peso exatamente o mesmo nos últimos 10 anos?, ao que ela, quase ofendida e despeitada, Porque como para viver e não vivo para comer.

Ela está deitada, quietinha. Seus olhinhos estão menores. Encovados, quase só se vê a íris castanha e a negra pupila. Os olhinhos estão lá no fundo, acesos e animados, falantes. Ela controla todos os enfermeiros com aqueles olhinhos.

Perguntei, antes de ir embora, o que ela achava de pôr um marca-passo.

- O meu coração antigo já está tão cheio de amor, que resolveram me dar um segundo, foi o que ela me respondeu.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Um segundo de silêncio.

Sencional !

Thá.

10:40 AM  
Anonymous Anônimo said...

I have a little tear in my eye.

beautiful.

2:01 PM  
Blogger Pedro Campos said...

Grande vovó! Obrigado.

11:16 AM  
Anonymous Anônimo said...

Belo tema. As avós são mesmo fantásticas. Têm o privilégio de ver o fruto de seus frutos e, para aqueles que tem a sorte de conviver com suas avós na idade adulta, parece que são o último elo com a infância, este lago sereno, manto azulado, sonho dourado, hino d'amor, tão feliz e sabiamente retratado por Casimiro.

7:21 PM  
Blogger Pedro Campos said...

Bonito comentário.

10:38 AM  

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